Ana Branco - Arquivo pessoal Fred Gelli
O coração não conhece limites
The Flying Tent and the Teacher of Teachers
10.2024
Artigo de Fred Gelli para Fast Company
Article by Fred Gelli for Fast Company
Texto em Português e Inglês | Text in Portuguese and English
[PT]
“Você só consegue de fato contribuir com algo relevante para qualquer ambiente ou grupo de pessoas se estiver aprendendo com eles.”
Tudo começou com um sachê de ketchup. O ano era 1986. Eu tinha mudado para o curso de design da PUC/ Rio depois de ter entendido que o sonho de ser engenheiro naval e desenhar veleiros não era para mim (levei três semanas para amarelar para o Leithold, livro de cálculo de 600 páginas escrito em uma língua alienígena). Estava no segundo período de desenho industrial e tinha que escolher um tema para o meu próximo projeto.
Naquela tarde, na cantina do IAG comendo um pedaço de pizza, me vi travando uma batalha com um sachê de catchup (sim, cariocas cometem essa heresia de colocar ketchup na pizza!), e claro que ele venceu!
Todo lambuzado de vermelho, me lembrei que tinha tido, poucos dias antes, outra experiência traumática tentando abrir um lacre de alumínio de um vidro de xarope. Pronto, meu tema estava escolhido. Iria fazer um projeto sobre embalagens mais inteligentes.
Na aula seguinte, apresentando minha intenção para a Ana Branco, hoje minha eterna guru, amiga e mentora, mas naquela época uma professora, no mínimo, extravagante em sua sala de aula, com uma fogueira sobre um chão de terra e uma cobertura de lona, ela achou que o tema poderia render um projeto interessante e me pediu então que levasse, na aula seguinte, algumas referências de embalagens que eu considerasse boas inspirações.
Menino novo, ainda tentando entender o contraste entre aquele ambiente hippie com aquela professora meio bruxa, meio fada, e tudo que existia no meu imaginário sobre o que seria uma sala de aula onde aprenderia a desenhar cadeiras e luminárias arrojadas, como as que via nos livros de design italiano, levei umas embalagens de uns biscoitos importados que minha mãe comprava e que tinham umas gavetinhas que me pareciam o máximo de usabilidade. Pra quê?!
Ana pegou minhas estimadas referências, olhou, olhou, deu uma gargalhada e as jogou na fogueira! “Garoto, você tá maluco? Vai querer começar a entender o que é ser um designer se inspirando nessas referências medíocres? Você já pensou na embalagem que te trouxe ao mundo?”
Ela se referia à barriga da minha mãe como uma super embalagem, que protege quando tem que proteger, nutre e acolhe o conteúdo e na hora exata o convida para uma vida independente. Nessa hora eu tive uma epifania que definiria minha vida como criativo e profissional para sempre. Entendi que podia olhar para a natureza como fonte de inspiração infinita para soluções de design.
No mesmo dia, comi uma banana e pude comparar quão mais friendly ela era se comparada ao infame sachê de ketchup. Naquele momento, eu estava descobrindo a “biônica”, hoje “biomimética”, que viria a definir minha trajetória profissional. Ser o lastro da maioria das minhas reflexões criativas, a semente original da Tátil, o escritório de design que este ano faz 35 anos e que viria a nascer um ano depois naquela mesma barraca, cultivada e nutrida pelas provocações revolucionárias dessa mulher incrível, que hoje tanto quero homenagear.
Ana Branco, com seus recém completos 80 anos e ainda em atividade na PUC, foi muito mais que uma professora para mim e para seus milhares de alunos nesses mais de 40 anos de trajetória.
Ela, acima de tudo, nos ajudou a entender quem de fato nós éramos. Nossa verdadeira natureza, nosso lugar de potência. Em uma aula de homenagem recente, no campus em que eu e inúmeros outros alunos de várias épocas organiza- mos, era fácil ver nos depoimentos o quanto era esse o seu verdadeiro papel.
Em nossos depoimentos sobre cada trajetória ficava claro que, muito mais do que nos ensinar metodologias ou técnicas de como sermos bons designers, Ana nos provocava, por meio de suas “artimanhas metodológicas”, a mergulhar em espaços diversos como escolas, hospitais, academias ou qualquer outro lugar em que pudéssemos interagir em profundidade com pessoas apaixonadas pelo o que faziam.
Eram os intercessores. Professores, médicos, terapeutas ou outros profissionais que tivessem objetivos de transformar realidades com os quais nos aliaríamos para, acima de tudo, aprender e, só na sequência, se tudo desse certo, contribuir por meio de ideias e soluções de design que fizessem a diferença.
Ana sempre acreditou que só pela convivência podemos de fato capturar o potencial criativo que existe em todos os espaços. Sempre trabalhando para catalisar o que já existe em abundância e não na carência. Sempre defendendo que o aprendizado verdadeiro está muito mais no processo, na jornada e não nos resultados.
Nessas jornadas profundas de muita entrega, com muitos tropeços, desafios, sorrisos e lágrimas, tínhamos a oportunidade de tomar contato com nossas limitações, nossas habilidades, forças e fraquezas, nosso verdadeiro caráter. Um grande laboratório existencial em que o projeto era apenas um pretexto para avançarmos no entendimento do que nos mobiliza, da maneira como vemos o mundo, no que acreditamos, do que faz nossos olhos brilharem! Autoconhecimento na veia.
Ana nos ensinou design thinking muito antes desta metodologia ser apresentada ao mundo por Stanford e pela IDEO. Desenhar “com” e não “para alguém”, prototipagem e experimentação o tempo todo, empatia absoluta com quem de fato conhece o tema no qual você está interessado. Ouvir mais do que falar.
Nunca chegar com a arrogância de achar que sabe o que o outro precisa, ou que você é o “mágico solucionador” dos problemas de alguém. Você só consegue de fato contribuir com algo relevante para qualquer ambiente ou grupo de pessoas se estiver aprendendo com eles. Se as trocas forem verdadeiras em um ambiente de confiança e cumplicidade.
Ana sempre dizia que os “clientes” perfeitos para você evoluir como designer são as crianças. Elas não têm o menor pudor em dizer para você que não gostaram de algo que propôs e só assim é possível compreender o que de fato será relevante para alguém. Clientes com melindres no feedback só comprometem o processo de evolução das ideias.
Eu fui entendendo o que isso significava durante os quatro projetos que fiz com a Ana. Um deles com crianças surdas no Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), onde passei mais de um ano aprendendo com eles o que era a multissensorialidade. Certamente influência importante do trabalho que fizemos na identidade dos Jogos Paralímpicos do Rio e também nas cerimônias de abertura e encerramento que co-dirigi com Vik Muniz e Marcelo Rubens Paiva.
Já faz mais de 38 anos daquele bendito sachê de ketchup que mudou minha vida. Foi na barraca que entendi e senti quem era o Fred. O que de fato me interessava. Foi lá que aprendi a olhar para o mundo de um outro jeito, mantendo vivo o olhar das crianças com quem convivi em tantos projetos.
Foi na barraca que conheci alguns dos meus amigos da vida toda. Foi lá que entendi que o verdadeiro papel do designer é ser um agente de conexão de ideias, de saberes de pessoas. Foi lá que entendi que resultado é sempre proporcional a envolvimento. Não tem jeito. Se você quer que algo especial aconteça na sua vida, você tem que investir sua melhor energia com consistência e intensidade.
Passei isso para os mais de 600 alunos que tive durante os quase 20 anos em que lecionei no mesmo curso de design em que me formei. Passei para minhas filhas, que também foram alunas da Ana na barraca.
Agora no dia 6 de novembro vamos lançar, na semana que celebra os 30 anos da pós-graduação em design da PUC, o documentário “Barraca Voadora”, mostrando um pouco do que compartilho hoje aqui com vocês. Homenagear o olhar absolutamente revolucionário que a Ana Branco segue oferecendo para seus alunos para que, assim, mais pessoas possam conhecê-lo.
Dirigido por Fernanda Heinz, a mesma que diretora do incrível “Biocêntricos”, o documentário busca capturar um pouco da força, da delicadeza, da poética original da “professora dos professores” e toda a sua capacidade de contribuir para a formação de indivíduos que, por meio da paixão e da criatividade, seguem acreditando que é possível mudar o mundo.
[EN]
“You can only truly contribute something meaningful to any environment or group of people if you’re learning from them.”
It all started with a ketchup packet. The year was 1986. I had just switched to the Design program at PUC Rio after realizing that my dream of becoming a naval engineer and designing sailboats wasn’t meant to be (it took me three weeks to “chicken out” over Leithold’s 600-page calculus book written in an alien language). I was in the second semester of industrial design and needed to choose a theme for my next project.
That afternoon, at the IAG cafeteria while eating a slice of pizza, I found myself locked in battle with a ketchup packet (yes, cariocas commit the heresy of putting ketchup on pizza!), and, of course, it won! Covered in red, I remembered a traumatic experience from a few days prior, when I struggled to open a foil seal on a syrup bottle. Done. My theme was chosen. I’d do a project on smarter packaging.
In the next class, I presented my idea to Ana Branco, now my eternal guru, friend, and mentor, but back then just an unusually eccentric professor in her “classroom” — a tent on a dirt floor with a bonfire inside. She thought my theme could make an interesting project and asked me to bring some reference packaging that I thought was well-designed for the following class.
Still new to it all, trying to make sense of the contrast between that hippie setting with this professor who was part witch, part fairy, and everything I had imagined a classroom for learning to design stylish chairs and lamps — like the ones in Italian design books — should be, I brought a few imported cookie packages my mother used to buy, with little drawers that struck me as the peak of usability. Oh, how wrong I was! Ana took my cherished references, examined them, laughed, and tossed them into the fire! “Kid, are you crazy? You want to start learning what it means to be a designer with these mediocre references? Have you thought about the packaging that brought you into this world?”
She was referring to my mother’s womb as the ultimate packaging — it protects when needed, nourishes, and cradles the contents, and at just the right time, invites them to lead an independent life. At that moment, I had an epiphany that would forever shape my life as a creative and professional. I realized I could look to nature as an endless source of inspiration for design solutions.
That same day, I ate a banana and compared how much more user-friendly it was compared to that infamous ketchup packet. I was discovering “bionics” — what we now call “biomimicry” — which would define my professional journey, become the foundation for most of my creative reflections, and plant the original seed for Tátil, the design office now celebrating its 35th anniversary, which was born a year later in that very tent, nourished by the revolutionary provocations of this incredible woman I’m honoring today.
Ana Branco, now freshly 80 and still active at PUC, was much more than a teacher to me and her thousands of students over more than 40 years. She helped us understand who we truly were, our true nature, and our power place of strength. In a recent tribute class on campus that I and numerous alumni from various eras organized, it was easy to see in every testimonial how much this was her real purpose.
In our stories, it became clear that beyond teaching us methodologies or techniques to become good designers, Ana provoked us — through her “methodological tricks” — to dive into diverse spaces such as schools, hospitals, gyms, or any place where we could interact deeply with people passionate about their work. They were the “intercessors” — teachers, doctors, therapists, or other professionals driven by goals of transforming realities, with whom we would ally to, first and foremost, learn, and if all went well, contribute with ideas and design solutions that made a difference.
Ana always believed that only through real coexistence could we capture the creative potential in every space, constantly working to amplify what already existed in abundance rather than focusing on lack. She insisted that true learning lies far more in the journey than in the results. In these intense journeys, full of dedication, missteps, challenges, smiles, and tears, we had the opportunity to encounter our limitations, strengths, and weaknesses, our true character — a great existential laboratory where the project was merely an excuse to advance in understanding what moves us, how we see the world, what we believe in, and what makes our eyes light up. True self-discovery.
Ana taught us design thinking long before the methodology was popularized by Stanford and IDEO — designing *with* and not *for* someone, prototyping and experimenting constantly, with absolute empathy for the people who truly understand the subject you’re interested in. Listening more than speaking, never approaching with the arrogance of assuming you know what the other needs or that you are the “magical solver” of someone’s problems. You can only genuinely contribute something relevant to any environment or group if you’re learning with them, if the exchanges are authentic in a trusting, collaborative environment.
Ana always said that the perfect “clients” for a designer’s growth are children. They have no qualms about telling you they don’t like what you’ve proposed, and only then can you understand what truly resonates. Clients who handle feedback too delicately only compromise the evolution of ideas.
I gradually came to understand what this meant during the four projects I completed with Ana. One of them was with deaf children at the National Institute for the Education of the Deaf — INES, where I spent over a year learning with them about multisensory experiences. It was undoubtedly a vital influence on the work we did in the identity for the Rio Paralympic Games and the opening and closing ceremonies I co-directed with Vik Muniz and Marcelo Rubens Paiva.
It’s been over 38 years since that blessed ketchup packet that changed my life. In that tent, I understood and felt who Fred was, what truly interested me. It was there that I learned to look at the world differently, keeping alive the childlike perspective I’d shared with so many projects. It was in that tent that I met some of my lifelong friends. It was there that I learned the designer’s true role — to connect ideas, knowledge, and people. It was there I understood that results are always proportional to involvement. There’s no shortcut: if you want something special to happen in your life, you must invest your best energy with consistency and intensity. I passed that on to the more than 600 students I taught over nearly 20 years in the same design course where I graduated. I passed it on to my daughters, who were also Ana’s students in the tent.
On November 6th, during the week celebrating the 30th anniversary of PUC’s design graduate program, we’ll launch the documentary *Flying Tent*, showcasing a bit of what I’m sharing here with you. It’s a tribute to Ana Branco’s profoundly revolutionary perspective that she continues to offer her students so that more people can experience it.
Directed by Fernanda Heinz, the same director behind the incredible Biocentricos, the documentary seeks to capture a bit of the strength, delicacy, and original poetry of the “teacher of teachers” and her extraordinary capacity to shape individuals who, through passion and creativity, continue to believe that changing the world is possible!
Ficha Técnica
Texto:
Fred Gelli
Comunicação&Mkt&Marca Tátil:
Luiza Magalhães, Marcelo Cândido e Natália Silveira
Assessoria:
Flávia Nakamura