Credit: Work by Gabi Gelli - Ressignificação, 2019

A natureza do erro e a atrofia da intuição

The nature of error and the atrophy of intuition

02.2024

Artigo de Fred Gelli para Fast Company
Article by Fred Gelli for Fast Company

Texto em Português e Inglês | Text in Portuguese and English 

[PT]
No final de semana passada, voltando de viagem, diante de um aparente engarrafamento no viaduto que dá acesso ao túnel Rebouças, minha mulher, que estava dirigindo, me perguntou: “o que eu faço? Encaro ou pego o caminho alternativo?”.

Na hora eu disse “calma, vou olhar no Waze”, mas era tarde demais. Ela pegou o caminho de baixo. Andamos 50 metros e o trânsito parou. Nessa hora, o trajeto abriu na tela e mostrou que mesmo engarrafado, o viaduto era a melhor opção.

Quando tinha uns 20 anos e queria saber se naquele dia iria ventar o suficiente para velejar de windsurf, eu olhava para o céu, via como estavam as nuvens, percebia o jeito que uma árvore perto da minha casa balançava, prestava atenção na temperatura e formava minha opinião sobre como seria aquela tarde.

Às vezes, quando a ideia era ir para Araruama, ligava para o seu Nelson, o segurança do condomínio da casa do meu avô, e ele, como bom pescador, me garantia: “pode vir! A nuvem tá presa no topo da montanha!” Hoje, o Windguru fornece com precisão o comportamento do vento com pelo menos uma semana de antecedência.

Maravilhoso poder desfrutar da magia dos algoritmos nos ajudando em quase tudo. Mas, e se falta internet ou a bateria do celular acaba?

Por milhares de anos, exercitamos nossos sentidos e nossa capacidade cognitiva para ler os sinais da natureza, das pessoas e do céu. Combinados com nossa fé e imaginação, desbravamos o desconhecido, fundamos civilizações, transformamos terra em naves espaciais, construindo uma trajetória sem precedentes na história de 3,8 bilhões de anos da vida no planeta. Tudo a partir das decisões que tomamos.

Com o tempo, ferramentas e acessórios foram refinando nossa capacidade de fazer as melhores escolhas. A bússola e o astrolábio aumentaram radicalmente nossas habilidades de navegação. O raio X e a ressonância magnética revolucionaram os diagnósticos e por aí vai. Mas, de alguma forma, o espaço da decisão continuava em nossas mãos. Para o bem e para o mal. Até agora.

Se hoje já não vale mais a pena discutir com o Waze, ou com o Tinder (como era pré-histórico ficar enchendo a cara na balada na esperança de esbarrar com a cara metade!), isso fará ainda menos sentido com o boost que invade nossas vidas com a inteligência artificial.

O nível de precisão, a capacidade de avaliação de quantidades infinitas de dados e, mais para frente um pouquinho (só um pouquinho, talvez de três a cinco anos até que a AGI se apresente para o jogo), a capacidade de relacionar variáveis de forma criativa e de fato inteligente vão fazer de nossa intuição algo definitivamente obsoleto.

Temos falado muito dos empregos e atividades que serão substituídos pela tecnologia, mas é bem diferente quando o que está sendo ameaçado é uma das nossas mais sofisticadas capacidades humanas. Um tipo de atalho cognitivo, sensorial e até espiritual que permite que nos conectemos com a realidade, desde as demandas mais triviais do dia a dia até os movimentos que transformam nossas vidas.

Como a natureza é obcecada por economia, nosso cérebro entende que o que não está sendo usado não merece energia. Da mesma maneira que perdemos a capacidade que tínhamos de guardar dezenas de números de telefones de cabeça, existe uma chance enorme de que nossa intuição vire peça do museu da evolução. E o que isso de fato pode significar?

Segundo Daniel Kahneman — prêmio Nobel de ciências econômicas em 2002 e pai da economia comportamental e da psicologia do julgamento e tomada de decisão –, nossa intuição, de um modo geral, nos induz ao erro. Tendemos a acreditar de uma maneira quase irresponsável em nossos julgamentos, muitas vezes com pouca fundamentação, nos conduzindo a equívocos históricos.

E é aí que quero chegar. Com o aumento radical da assertividade e da consequente produtividade (obsessão do nosso tempo), o que será de nós sem a chance de errar? Mais do que isso, o quanto da jornada exploratória, do processo de busca do caminho certo, foi fundamental para nossa própria evolução como espécie?

O PODER DO ERRO

Uma gigantesca quantidade das melhores descobertas e invenções vieram de acidentes e erros de interpretação. Da batata frita ao Viagra. Da pólvora ao antibiótico.

O quanto aprendemos errando? O pensamento crítico e até o autoconhecimento dependem de nossas falhas. Quando usamos nosso livre arbítrio, errando, acertando, escolhendo ir por um caminho ou por outro, ativamos um dos princípios que garantem resiliência para ecossistemas: a descentralização.

Até poucas décadas atrás — talvez a invenção da bomba atômica seja o grande marco –, era difícil imaginar pessoas, países ou empresas que pudessem colocar todo o planeta em risco. Não existiam donos do processo decisório. Pelo menos, não na escala em que flertamos agora.

Quando acidentes de trânsito ocorrem por falhas de indivíduos (e não são poucos) estatisticamente, por conta da descentralização, podemos confiar que a enorme maioria tomará as decisões corretas. Ontem, assistindo a “O Mundo Depois de Nós”, na Netflix, deu frio na barriga vendo centenas de Teslas autônomos idênticos se chocando como um cardume suicida para bloquear uma estrada. Foi mal o spoiler.

Crédito: Netflix

Não faltam vozes alertando para os riscos de tamanha centralização de poder nas “mãos” de algoritmos e de seus poucos donos. Mas não me lembro de ter ouvido discussões sobre o direito e o poder do erro em nosso processo evolutivo.

Talvez nossa intuição seja uma conexão ancestral com o planeta e a realidade. Talvez ela seja um recurso poderoso do grande laboratório que a evolução opera por aqui. Um recurso que simplesmente joga os dados para cima abrindo espaço para o acaso. A própria evolução das espécies é toda regida por ele. Acidentalmente, um determinado indivíduo se tornou mais apto a evoluir.

O que seria da evolução se tomasse todas as suas decisões fundamentadas em algoritmos obcecados pelo acerto e pela produtividade? Certamente nós não estaríamos por aqui. Bom, mas isso tudo é só uma exploração intuitiva.

Confira o audio-artigo no Spotify

[EN]
Last weekend, on my way back from a trip, my wife, who was driving, asked me: “What do I do? Do I face it or take the alternative route?”.

At the time I said “calm down, I’ll look on Waze”, but it was too late. She took the downward route. We walked 50 meters and the traffic stopped. At that point, the route opened up on the screen and showed that, even in traffic jams, the viaduct was the best option.

When I was about 20 years old and wanted to know if it was going to be windy enough to go windsurfing that day, I would look up at the sky, see what the clouds were like, notice the way a tree near my house was swaying, pay attention to the temperature and form my own opinion about what the afternoon would be like.

Sometimes, when the idea was to go to Araruama, I would call Mr. Nelson, the security guard at my grandfather’s condominium, and he, as a good fisherman, would assure me: “You can come! The cloud is stuck on top of the mountain!” Today, Windguru provides accurate wind forecasts at least a week in advance.

It’s wonderful to be able to enjoy the magic of algorithms helping us with almost everything. But what if there’s no internet or the cell phone battery runs out?

For thousands of years, we have exercised our senses and cognitive ability to read the signs of nature, people and the sky. Combined with our faith and imagination, we have explored the unknown, founded civilizations, transformed land into spaceships, building an unprecedented trajectory in the 3.8 billion year history of life on the planet. All from the decisions we made.

Over time, tools and accessories have refined our ability to make the best choices. The compass and astrolabe radically increased our navigational skills. X-rays and magnetic resonance imaging revolutionized diagnoses and so on. But, somehow, the decision-making space was still in our hands. For better or for worse. Until now.

If today it’s no longer worth arguing with Waze, or Tinder (how prehistoric it was to go clubbing in the hope of bumping into your better half!), it will make even less sense with the boost that artificial intelligence is invading our lives.

The level of precision, the ability to evaluate infinite amounts of data and, a little further down the line (just a little, maybe three to five years before AGI comes into play), the ability to relate variables in a creative and truly intelligent way will make our intuition something definitely obsolete.

We’ve talked a lot about the jobs and activities that will be replaced by technology, but it’s quite different when what’s being threatened is one of our most sophisticated human capacities. A kind of cognitive, sensory and even spiritual shortcut that allows us to connect with reality, from the most trivial demands of everyday life to the movements that transform our lives.

Since nature is obsessed with economy, our brains understand that what isn’t being used doesn’t deserve energy. In the same way that we have lost our ability to store dozens of phone numbers in our heads, there is a huge chance that our intuition will become a museum piece of evolution. And what might that actually mean?

According to Daniel Kahneman — who won the Nobel Prize in Economic Sciences in 2002 and is the father of behavioral economics and the psychology of judgment and decision-making — our intuition generally leads us astray. We tend to believe our judgments in an almost irresponsible way, often with little foundation, leading us to historical misunderstandings.

And that’s my point. With the radical increase in assertiveness and consequent productivity (the obsession of our time), what will become of us without the chance to make mistakes? More than that, how fundamental was the exploratory journey, the process of finding the right path, to our own evolution as a species?

THE POWER OF ERROR

A huge number of the best discoveries and inventions have come from accidents and misinterpretations. From potato French fries to Viagra. From gunpowder to antibiotics.

How much do we learn by making mistakes? Critical thinking and even self-knowledge depend on our failures. When we use our free will, making mistakes, getting it right, choosing to go one way or the other, we activate one of the principles that guarantee resilience for ecosystems: decentralization.

Until a few decades ago — perhaps the invention of the atomic bomb is the big milestone — it was hard to imagine people, countries or companies that could put the entire planet at risk. There were no decision-makers. At least, not on the scale we flirt with now.

When traffic accidents occur due to the failures of individuals (and there are many), statistically, because of decentralization, we can trust that the vast majority will make the right decisions. Yesterday, watching “The World After Us” on Netflix, it sent a chill down my spine to see hundreds of identical autonomous Teslas colliding like a suicidal shoal to block a road. Sorry about the spoiler.

Crédito: Netflix

There is no shortage of voices warning of the risks of such centralization of power in the “hands” of algorithms and their few owners. But I don’t remember hearing any discussions about the right and power of error in our evolutionary process.

Perhaps our intuition is an ancestral connection with the planet and reality. Perhaps it is a powerful resource in the great laboratory that evolution operates here. A resource that simply throws the dice up, making room for chance. The very evolution of species is governed by it. Accidentally, a certain individual has become more apt to evolve.

What would become of evolution if it made all its decisions based on algorithms obsessed with accuracy and productivity? We certainly wouldn’t be here. Well, that’s just an intuitive exploration.

Ficha Técnica

Texto:
Fred Gelli 

Comunicação&Mkt&Marca Tátil:
Luiza Magalhães, Marcelo Cândido e Natália Silveira

Assessoria:
Flávia Nakamura