Credit: Work by Gabi Gelli - Ressignificação, 2019

A Sumaúma e as sementes de futuro. O desafio de regenerar nossa própria natureza

Sumaúma and the seeds of the future. The challenge of regenerating our own nature

02.2024

Artigo de Fred Gelli para Fast Company
Article by Fred Gelli for Fast Company

Texto em Português e Inglês | Text in Portuguese and English 

[PT]
Regeneração
.

Essa, assim como muitas outras palavras do universo da sustentabilidade, vem sendo esvaziada de sentido por usos superficiais, equivocados e oportunistas, espalhados em uma avalanche de textos, peças publicitárias e artigos sobre a bandeira ESG.

Diferentemente do significado de restaurar um ambiente ou um quadro, onde pressupõe-se uma volta à condição original, regenerar tem uma ambição maior, mais realista, pois no lugar de querer voltar ao passado, o termo inclui uma dimensão criativa.

Difícil imaginarmos uma floresta amazônica restaurada. Voltando a ser como já foi. Na verdade, a natureza nunca volta. Ela sempre vai. Evoluir significa reconfigurar, rearticular, e é isso que a palavra regenerar ambiciona.

Abrir espaço para novas articulações, para novos desenhos que, sim, recuperem valores perdidos, mas considerando novas variáveis.

Se formos olhar para a floresta amazônica, há 40 mil anos não havia Sapiens por lá. Hoje, mais de 30 milhões de pessoas coabitam sete milhões de quilômetros quadrados com tatus, onças, araras e uma vegetação exuberante.No dicionário, regeneração significa “dar nova existência a; melhorar; corrigir; revivificar”.

Definitivamente, não faltam demandas por regeneração em nossa realidade exaurida e superexplorada em todos os níveis, do físico ao espiritual, do moral ao ambiental. Começando pela regeneração da própria palavra regeneração!

Crédito: J. Brarymi/ iStock

Logo, restaurar significaria investir em uma floresta inabitada por humanos. O que não parece um objetivo que faça sentido. Precisamos semear a realidade com novas ideias e configurações que tenham o poder de fazer brotar futuros desejáveis.

AS SEMENTES

Que tipo de sementes precisamos para isso? Esses dias, vi uma sumaúma com uns 40 metros de altura no Jardim Botânico do Rio espalhando suas sementes. Como é possível que um grão de cinco milímetros de diâmetro possa conter uma sumaúma em potencial?

Afinal, ali existe a ideia completa dessa gigante tropical, só carecendo de terra fértil, água, luz do sol e um pouco de sorte para que ela possa seguir a jornada da árvore mãe, que um dia também brotou de uma semente.

Sementes são, em si, futuros latentes. Elas concentram energia criativa como nenhuma outra estrutura consegue fazer.

Será que nossa prioridade, nesse momento de tanta demanda por regeneração, não seria direcionarmos nosso esforço criativo para desenvolvermos sementes de futuros?

Assim como uma árvore cresce na floresta para gerar valor coletivo produzindo sombra para alguns, moradia para muitos, fertilizando o solo com suas folhas e frutos, capturando o gás carbônico da atmosfera e devolvendo oxigênio, nossas sementes de futuro deveriam ter objetivos com a mesma ambição.

Crédito: simonkr/ iStock

Elas devem carregar as melhores ideias. Ideias vivas. Resultado da soma de inteligências de múltiplos atores, da riqueza da diversidade. Ideias com o poder de mudar comportamentos e transformar cenários.

Para que elas tenham alguma chance de vingar e promover transformações relevantes, precisamos colocar os sistemas vivos no centro da conversa. Já deu essa estória de “consumer centric” ou mesmo “people centric”. Precisamos de soluções “life centric”!

Só assim poderemos regenerar o capitalismo e sua obsessão por crescimento sem fim, regenerar a democracia refém da polarização e da manipulação das verdades sintéticas.

Precisamos regenerar nossas ambições como espécie, que de Sapiens parece que temos cada vez menos. A lista seria sem fim se pensarmos em tudo que carece de regeneração, de correção de rumo, de “revivificação”, como diz o dicionário.

Em Paris. no mês passado, conversando com um amigo ele me contou sobre uma dessas ideias regenerativas poderosas. Dois empreendedores, Alexandre Drouard e Samuel Nahon, apaixonados pela qualidade dos produtos de origem francesa (terrois) abriram um restaurante na Rue du Nil. Uma rua degradada, com lojas fechadas há décadas no 2º arrondisement.

O bistrô acabou ganhando uma estrela Michelin e, com isso, passou a atrair uma grande clientela. A partir daí, os empreendedores resolveram espalhar sementes criativas para regenerar a rua e a região.

Crédito: Terroir d’Avenir

Abriram uma padaria, depois uma queijaria, um açougue, uma quitanda e uma peixaria, todos com a mesma marca: Terrois d’Avenir. Tudo orgânico e de alta qualidade.

Hoje, a rua está completamente regenerada e na lista de dicas cool de Paris. Claro que fui lá conferir e me esbaldar com as delícias com poder regenerador.

ESPALHAR E PROTEGER

Mas, como espalhar sementes em grande escala? A sumaúma faz isso de um jeito brilhante. Suas sementes são envoltas em uma paina que permite que elas voem para longe da árvore mãe, ou, ainda dentro do próprio fruto, possam atravessar oceanos. Já foram encontradas sumaúmas na África comprovadamente vindas das nossas florestas.

Como podemos criar estratégias para disseminar as melhores sementes de futuro aumentando a chance de elas brotarem e transformarem a realidade?

Como escrevi no artigo passado, acredito que a melhor estratégia seja por meio do desejo. Ideias que engajem pessoas, empresas e governos pelo vislumbre concreto de um futuro melhor. Mesmo que tenhamos que renunciar a parte do que nos trouxe até aqui.

Uma vez que essas sementes sejam espalhadas, elas precisam ser protegidas para que possam resistir aos ataques de pragas, pessimistas de plantão e conservadores radicais.

Assim como formigas cortadeiras, mentes ancoradas em ideias ultrapassadas adoram devorar ideias frescas brotando, pois elas são sempre uma ameaça ao status quo. Como proteger os brotinhos de ideias regeneradoras?

O Nucleário, projeto dos irmãos Bruno e Pedro Rutman — e vencedor do prêmio Biomimicry Global Design Challenge –, usa a inspiração que vem das bromélias como solução para proteger os brotos de espécies da mata atlântica, em seu processo de crescimento, da gula dos predadores.

Crédito: Nucleário

Um grande disco vazado com um design biomimético garante proteção física e provisão de água acumulada da chuva. Uma ideia simples, inspirada na inteligência natural para proteger os que virão a ser árvores no futuro.

Vamos ter que fazer o mesmo com as ideias com poder de regeneração.

O VALOR DO SOLO

De certa forma, muitas das sementes de futuro já existem por aí e vêm sendo cultivadas nas áreas de inovação de empresas, em centros de pesquisas nas universidades e em milhares de startups mundo afora.

O problema é que não bastam sementes de qualidade se o solo não estiver fértil. Por maior potencial que tenham, simplesmente não vingam. O solo nas empresas está ácido. Ressecado pelo pragmatismo dos resultados trimestrais.

A academia segue ancorada no passado perdendo estudantes e relevância, e sobram para os empreendedores mais obstinados o esforço de fazer vingar a semente do diferente, provando que é possível lucrar gerando impacto positivo, desafiando os gigantes com um ponto de vista mais fresco.

Mas ainda é pouco. Vingam menos sementes de futuro do que a urgência do nosso tempo exige. Ainda contamos nos dedos as empresas e organizações que realmente parecem estar atuando como protagonistas no desafio de virar o jogo. São sempre as mesmas. Temos que encontrar maneiras de fertilizar o solo para que mais sementes frutifiquem.

Crédito: Josiah Hunt/ Pacific Biochar

Um artigo de Satish Kumar, um dos gurus da Schumacher College, diz que as palavras húmus, humano e humildade têm todas a mesma origem latina. Talvez o solo pobre, sem húmus, seja consequência direta da desumanização do nosso modo de vida. Empresas desumanas, governos desumanos, relações desumanas.

Quando nos desumanizamos, viramos agentes da degeneração. Perdemos a dimensão de humildade que deveríamos ter diante do todo, da força e do brilho da natureza. E o pior, nos tornamos arrogantes demais para enxergar os riscos que estamos correndo, virando a maior ameaça para nós mesmos.

Talvez nosso verdadeiro desafio regenerativo seja, primeiro, regenerar a nossa própria natureza, recuperando as conexões ancestrais com a nossa casa, com o valor incomensurável da vida, como as populações originárias sempre tiveram. Um desafio espiritual.

Assim, quem sabe, mais sábios e humildes poderemos fazer valer a força do que nos torna verdadeiramente humanos, criando a condição para que futuros desejáveis frutifiquem. Pois, como diz nosso guru imortal Ailton Krenak, “o futuro é ancestral”.

[EN]
Regeneration.

This, like many other words in the world of sustainability, has been rendered meaningless by superficial, misguided and opportunistic uses, spread across an avalanche of texts, advertising pieces and articles on the ESG banner.
In the dictionary, regeneration means “to give new existence to; to improve; to correct; to revive”.

There is definitely no shortage of demands for regeneration in our exhausted and overexploited reality at all levels, from the physical to the spiritual, from the moral to the environmental. Starting with the regeneration of the word regeneration itself!
Unlike the meaning of restoring an environment or a picture, which presupposes a return to the original condition, regenerating has a greater, more realistic ambition, because instead of wanting to return to the past, the term includes a creative dimension.

It’s hard to imagine a restored Amazon rainforest. Returning to the way it once was. In fact, nature never comes back. It always goes. Evolving means reconfiguring, rearticulating, and that’s what the word regenerate aims to do.

To make room for new articulations, for new designs that, yes, recover lost values, but taking into account new variables.

If we look at the Amazon rainforest, 40,000 years ago there were no Sapiens there. Today, more than 30 million people cohabit seven million square kilometers with armadillos, jaguars, macaws and exuberant vegetation.

Crédito: J. Brarymi/ iStock

So restoration would mean investing in a forest uninhabited by humans. Which doesn’t seem like a goal that makes sense. We need to sow the seeds of reality with new ideas and configurations that have the power to sprout desirable futures.

THE SEEDS

What kind of seeds do we need for this? The other day, I saw a kapok tree about 40 meters high in Rio’s Botanical Garden spreading its seeds. How is it possible that a speck five millimeters in diameter can contain a potential kapok tree?

After all, there is the complete idea of this tropical giant, all it needs is fertile soil, water, sunlight and a bit of luck so that it can follow the journey of the mother tree, which once also sprouted from a seed.

Seeds are latent futures in themselves. They concentrate creative energy like no other structure can.

Wouldn’t our priority, at this time of so much demand for regeneration, be to direct our creative efforts towards developing seeds of futures?

Just as a tree grows in the forest to generate collective value by producing shade for some, housing for many, fertilizing the soil with its leaves and fruit, capturing carbon dioxide from the atmosphere and returning oxygen, our seeds of the future should have goals with the same ambition.

Crédito: simonkr/ iStock

They should carry the best ideas. Living ideas. The result of the sum of the intelligences of multiple actors, of the richness of diversity. Ideas with the power to change behavior and transform scenarios.

For them to have any chance of succeeding and promoting relevant transformations, we need to put living systems at the center of the conversation. This whole “consumer centric” or even “people centric” thing is over. We need “life centric” solutions!

Only in this way can we regenerate capitalism and its obsession with endless growth, and regenerate democracy, which is hostage to polarization and the manipulation of synthetic truths.
We need to regenerate our ambitions as a species, of which we seem to have fewer and fewer Sapiens. The list would be endless if we thought of everything that needs regeneration, course correction, “revival”, as the dictionary says.

In Paris last month, talking to a friend, he told me about one of these powerful regenerative ideas. Two entrepreneurs, Alexandre Drouard and Samuel Nahon, passionate about the quality of products of French origin (terrois) opened a restaurant on Rue du Nil. A rundown street with stores that had been closed for decades in the 2nd arrondisement.

Crédito: Terroir d’Avenir

The bistro ended up winning a Michelin star and attracted a large clientele. From there, the entrepreneurs decided to spread creative seeds to regenerate the street and the area.
They opened a bakery, then a cheese shop, a butcher, a greengrocer and a fishmonger, all under the same brand: Terrois d’Avenir. All organic and of high quality.

Today, the street has been completely regenerated and is on the list of cool tips in Paris. Of course I went there to check it out and feast my eyes on the regenerating delicacies.

SPREAD AND PROTECT

But how do you spread seeds on a large scale? The kapok tree does it brilliantly. Its seeds are encased in a skin that allows them to fly away from the mother tree, or, even inside the fruit itself, to cross oceans. Kapok trees have already been found in Africa that are proven to have come from our forests.

How can we create strategies to spread the best seeds of the future, increasing the chance that they will sprout and transform reality?

As I wrote in the last article, I believe the best strategy is through desire. Ideas that engage people, companies and governments through the concrete vision of a better future. Even if we have to give up part of what has brought us this far.
Once these seeds have been spread, they need to be protected so that they can withstand attacks from pests, pessimists on duty and radical conservatives.

Like leaf-cutter ants, minds anchored in outdated ideas love to devour freshly sprouting ideas, as they are always a threat to the status quo. How can we protect the sprouts of regenerating ideas?

Nucleário, a project by the brothers Bruno and Pedro Rutman — and winner of the Biomimicry Global Design Challenge award — uses the inspiration that comes from bromeliads as a solution to protect the sprouts of Atlantic forest species, in their growth process, from the gluttony of predators.

Crédito: Nucleário

A large hollow disk with a biomimetic design guarantees physical protection and provision for accumulated rainwater. A simple idea, inspired by natural intelligence, to protect those who will become trees in the future.

We’ll have to do the same with ideas with regenerative power.

THE VALUE OF SOIL

In a way, many of the seeds of the future are already out there and are being cultivated in the innovation areas of companies, in research centers at universities and in thousands of startups around the world.

The problem is that quality seeds aren’t enough if the soil isn’t fertile. No matter how much potential they have, they simply won’t thrive. The soil in companies is acidic. Parched by the pragmatism of quarterly results.

Academia remains anchored in the past, losing students and relevance, and the most obstinate entrepreneurs are left with the task of spreading the seed of something different, proving that it is possible to make a profit by generating a positive impact, challenging the giants with a fresher point of view.

But it’s still not enough. There are fewer seeds of the future than the urgency of our times demands. We can still count on our fingers the companies and organizations that really seem to be acting as protagonists in the challenge of turning the tide. It’s always the same ones. We have to find ways to fertilize the soil so that more seeds bear fruit.

Crédito: Josiah Hunt/ Pacific Biochar

An article by Satish Kumar, one of the gurus at Schumacher College, says that the words humus, human and humility all have the same Latin origin. Perhaps the poor soil, without humus, is a direct consequence of the dehumanization of our way of life. Inhumane companies, inhumane governments, inhumane relationships.

When we dehumanize ourselves, we become agents of degeneration. We lose the dimension of humility that we should have in the face of the whole, of the strength and brilliance of nature. What’s worse, we become too arrogant to see the risks we are taking, becoming the greatest threat to ourselves.

Perhaps our real regenerative challenge is first to regenerate our own nature, recovering the ancestral connections with our home, with the immeasurable value of life, as the original populations have always had. A spiritual challenge.

In this way, who knows, we may be wiser and more humble and be able to bring to bear the power of what makes us truly human, creating the conditions for desirable futures to bear fruit. For, as our immortal guru Ailton Krenak says, “the future is ancestral”.

Ficha Técnica

Texto:
Fred Gelli 

Comunicação&Mkt&Marca Tátil:
Luiza Magalhães, Marcelo Cândido e Natália Silveira

Assessoria:
Flávia Nakamura