Credit: Work by Gabi Gelli - Ressignificação, 2019
A vida é confusão
Life is confusion
05.2024
Artigo de Fred Gelli para Fast Company
Article by Fred Gelli for Fast Company
Texto em Português e Inglês | Text in Portuguese and English
[PT]
Precário, provisório, perecível;
Falível, transitório, transitivo;
Efêmero, fugaz e passageiro;
Eis aqui um vivo, eis aqui um vivo.
Impuro, imperfeito, impermanente;
Incerto, incompleto, inconstante;
Instável, variável, defectivo;
Eis aqui um vivo, eis aqui.
Ouvindo esta música do Lenine de olhos fechados em um voo para São Paulo, me peguei em lágrimas fartas quando me dei conta do que se tratava. Ele usa uma sequência com mais de 20 adjetivos com conotações supostamente negativas, como imperfeito ou falível, para descrever simplesmente a manifestação mais original de todo o universo: a vida, ou melhor “o vivo”. Aquele que existe a partir da sofisticada alquimia bioquímica do cosmos e se manifesta em corpo e alma por aqui.
Sim. Se estamos vivos, somos realmente inconstantes e instáveis e nunca estamos satisfeitos. Em meio ao solo de piano de Amaro Freitas ao final da música, que parece dar cor e forma à explosão da vida, caíram muitas fichas ao mesmo tempo. Primeiro, a poesia e a arte são sempre atalhos para gente entender e sentir o que existe de mais importante. E depois, de como temos sido injustos com nós mesmos, cobrando a perfeição, a eternidade, o equilíbrio e a completude a meros seres vivos que somos. Uma incompatibilidade absoluta com a nossa própria natureza.
Em minha recente palestra no Web Summit, trouxe o valor do erro, do acaso e da imperfeição como essenciais para a geração do novo, tanto no campo da tecnologia e da inovação, mas também na própria evolução da vida. Segundo Darwin, da Archaea, a simbólica primeira forma de vida que temos conhecimento até o sapiens (seguimos com a mania de nos colocarmos como o suprassumo da existência), a única coisa que podemos garantir é que se não fossem os tropeços nas cópias genéticas, ainda estaríamos presos nas poças gasosas de um planeta primitivo. Nós somos puro acidente.
E por que diabos resolvemos que temos que ser exatamente tudo que não somos? Essa ditadura maluca da performance, da produtividade e da infalibilidade parece ser a razão maior da doença coletiva que vivemos hoje.
Da felicidade artificial do Instagram, aos filtros do TikTok, dos preenchimentos faciais bizarros aos coquetéis de proteína que prometem músculos tonificados para sempre, criamos uma perigosa armadilha para nós mesmos. A perfeição inalcançável.
O resultado? Uma sociedade doente, com novas gerações frágeis e infelizes, epidemias de solidão e a tal saúde mental virando o assunto de todas as pautas. Causa e consequência se alinhando na direção de futuros sombrios.
Como criaremos futuros positivos se estamos doentes demais para imaginá-los ? O que terá que acontecer para cairmos na real e rompermos esse ciclo vicioso? Para começar, talvez devêssemos desmontar a ideia de que saúde mental exista. Ela parece ser mais uma das ficções que perseguimos. Como se os incômodos, os sofrimentos e os desequilíbrios não devessem acontecer. A vida normal, como lembra Lenine, é cheia disso. A busca por um estado de saúde inalcançável vira a razão da doença. Haja Rivotril.
E o pior é que parece que a coisa vai complicar bastante. Se hoje as redes sociais já são esse esteróide do ego com a pequena dose de AI embarcada, com o lançamento das novas gerações do Llama e Gemini anunciadas pela Meta e pelo Google, o poder hipnótico das telas só vai piorar. Um dado curioso foi divulgado recentemente de que jovens americanos entre 10 e 19 anos têm uma propensão 50 % menor de terem fraturas de ossos do que as gerações anteriores. Eles cada vez se expõem menos a riscos reais como andar de bicicleta, skate ou jogar futebol. Passam em média de cinco a nove horas por dia em frente às telas. Com isso as fraturas não são mais de pernas e braços, são psíquicas.
Para completar as más notícias, essa geração é a primeira da história que apresenta um QI abaixo dos pais. No livro “A Fábrica de Cretinos Digitais”, do Ph.D. em neurociência francês, Michel Desmurget, destaca os impactos negativos na cognição pelo uso excessivo de telas e acima de tudo, o comprometimento das habilidades sociais e emocionais. Uma geração com baixa resiliência, porque está cada vez mais distante das estratégias ancestrais da evolução de criar resistência para um indivíduo. Cair e levantar, errar para acertar, quebrar a cara para evoluir. Se colocamos na conta a terceirização da nossa intuição para algoritmos como Waze ou Tinder, e ainda mais recentemente nossa imaginação sendo delegada às AIs generativas, também tema da minha palestra do Web Summit, o que vai sobrar do humano?
Parece que a China está cuidando disso. Além do TikTok não existir por lá, o governo instaurou uma lei que limita o uso de vídeo games por jovens abaixo de 18 anos a três horas por semana, e apenas entre sexta e domingo. Numa ditadura parece fácil. Por aqui, vejo meus amigos, pais de jovens e adolescentes, lutando com os dilemas diários cada vez mais complexos. Ter a coragem de comprar a briga de não dar um celular para uma criança de 10 anos, mesmo que todos os amigos da escola já o tenham, ou ainda encontrar uma maneira de limitar as horas de telas dos adolescentes sem que eles surtem e digam que vão se matar, tem se mostrado um pesadelo. Que bom que já passei dessa fase!
Antídoto para isso tudo? Segundo Gilberto Gil: Vida é dor e confusão, Vida é som e paixão, Vida é o amor.
Volto para este artigo com os aprendizados do SXSW sobre a inteligência social. Não tem jeito não. Vamos ter que investir no amor, nas relações, nos encontros de perto, nos abraços. Vamos ter que ler mais para os filhos pequenos, convidá-los para programas irresistíveis como acampar perto de cachoeiras, subir em árvores para comer fruta no pé, andar à cavalo. Para os adolescentes, abrir espaços para eles socializarem no mundo real, como por exemplo aprendendo a tocar instrumentos, É difícil imaginar melhor oportunidade para exercitar a inteligência social do que montar uma banda. Como sempre, parece que o desafio é criativo.
Penso em como as marcas poderiam ser aliadas neste projeto tão importante de regeneração social. Como, a partir dos seus lugares de potência, sem exigir ampliação do nível de consciência de CEO’s e sim instinto de manutenção de relevância, poderiam oferecer produtos e serviços que estimulassem a inteligência social verdadeiramente, ajudando a desmontar preconceitos, padrões inalcançáveis e rotinas adoecidas? O que a Patagônia ou a Nike poderiam oferecer como estímulo para crianças e jovens largarem os vídeo games em nome dos esportes outdoor? Como a Lego ou a Mattel poderiam se aliar para pensarem em brinquedos analógicos irresistíveis? Como a Apple poderia colocar toda a sua competência em Design e UX para estimular jovens a se aventurarem coletivamente de um jeito saudável? Ou ainda, por que não, como as redes (anti) sociais que criaram boa parte do problema não puxam para si o desafio de se reinventarem em nome do bem da humanidade e de um lugar mais digno para suas marcas na história?
Bora trabalhar, turma?
Ouça aqui a música Vivo, de Lenine.
[EN]
Precarious, temporary, perishable;
Fallible, transitory, transitive;
Ephemeral, fleeting, and short-lived;
Here is a living being, here is a living being.
Impure, imperfect, impermanent;
Uncertain, incomplete, inconsistent;
Unstable, variable, defective;
Here is a living being, here is one.
Listening to this song by Lenine with my eyes closed on a flight to São Paulo, I found myself in tears when I realized what it was about. He uses a sequence of over 20 adjectives with supposedly negative connotations, like imperfect or fallible, to simply describe the most original manifestation of the entire universe: life, or rather “the living.” That which exists from the sophisticated biochemical alchemy of the cosmos and manifests in body and soul here.
Yes. If we are alive, we are indeed inconsistent and unstable and never satisfied. Amid the piano solo by Amaro Freitas at the end of the song, which seems to give color and shape to the explosion of life, many revelations fell into place. First, poetry and art are always shortcuts for us to understand and feel what is most important. And then, how we have been unfair to ourselves, demanding perfection, eternity, balance, and completeness from mere living beings that we are. An absolute incompatibility with our own nature.
In my recent lecture at the Web Summit, I emphasized the value of error, chance, and imperfection as essential for generating the new, both in the field of technology and innovation, but also in the evolution of life itself. According to Darwin, from Archaea, the symbolic first form of life we know of, to sapiens (we continue with the habit of considering ourselves the pinnacle of existence), the only thing we can guarantee is that if it were not for the stumbles in genetic copies, we would still be stuck in the gaseous pools of a primitive planet. We are pure accident.
And why the hell did we decide that we have to be exactly everything we are not? This crazy dictatorship of performance, productivity, and infallibility seems to be the major reason for the collective illness we experience today. From the artificial happiness of Instagram to the filters of TikTok, from bizarre facial fillers to protein cocktails promising eternally toned muscles, we have created a dangerous trap for ourselves. The unattainable perfection.
The result? A sick society, with new generations that are fragile and unhappy, epidemics of loneliness, and mental health becoming the topic of every agenda. Cause and consequence aligning towards gloomy futures.
How can we create positive futures if we are too ill to imagine them? What will have to happen for us to face reality and break this vicious cycle? For starters, perhaps we should dismantle the idea that mental health exists. It seems to be just another fiction we pursue. As if discomfort, suffering, and imbalances should not occur. Normal life, as Lenine reminds us, is full of this. The pursuit of an unattainable state of health becomes the reason for illness. Enough with Rivotril.
And the worst part seems that things are going to get even more complicated. If social networks are already this steroid of the ego with a small dose of AI embedded, with the launch of the new generations of Llama and Gemini announced by Meta and Google, the hypnotic power of screens will only worsen. A curious fact was recently revealed that young Americans between 10 and 19 years old are 50% less likely to have bone fractures than previous generations. They expose themselves less to real risks like biking, skateboarding, or playing soccer. They spend an average of five to nine hours a day in front of screens. As a result, fractures are no longer of legs and arms, but psychological.
To complete the bad news, this generation is the first in history to have a lower IQ than their parents. In the book “Screen Damage: The Dangers of Digital Media for Children,” by French Ph.D. in neuroscience, Michel Desmurget, highlights the negative impacts on cognition due to excessive screen use and, above all, the impairment of social and emotional skills. A generation with low resilience, because it is increasingly distant from the ancestral strategies of evolution to create resistance for an individual. Fall and get up, err to correct, break the face to evolve. If we account for the outsourcing of our intuition to algorithms like Waze or Tinder, and even more recently our imagination being delegated to generative AIs, also a theme of my lecture at the Web Summit, what will be left of the human?
It seems that China is handling this. Besides TikTok not existing there, the government has enacted a law that limits video game use for individuals under 18 to three hours a week, and only between Friday and Sunday. In a dictatorship, it seems easy. Here, I see my friends, parents of young teens, grappling with increasingly complex daily dilemmas. Having the courage to fight the battle of not giving a 10-year-old a cellphone, even though all their school friends already have one, or finding a way to limit screen time for teenagers without them freaking out and threatening to harm themselves, has proven to be a nightmare. Glad I’m past that stage!
The antidote to all this? According to Gilberto Gil: Life is pain and confusion, Life is sound and passion, Life is love.
I return to this article with lessons learned from SXSW about social intelligence. There’s no way around it. We’ll have to invest in love, in relationships, in close encounters, in hugs. We’ll have to read more to our young children, invite them to irresistible activities like camping near waterfalls, climbing trees to eat fruit right from the branch, riding horses. For teenagers, opening up spaces for them to socialize in the real world, such as learning to play musical instruments, is hard to imagine a better opportunity to exercise social intelligence than forming a band. As always, it seems the challenge is creative.
I think about how brands could be allies in this very important project of social regeneration. How, from their positions of power, without demanding an expansion of CEOs’ level of consciousness but rather an instinct to maintain relevance, they could offer products and services that truly stimulate social intelligence, helping to dismantle prejudices, unattainable standards, and sick routines? What could Patagonia or Nike offer as stimuli for children and youths to drop video games in favor of outdoor sports? How could Lego or Mattel come together to think about irresistible analog toys? How could Apple leverage all its design and UX expertise to encourage young people to venture collectively in a healthy way? Or even, why not, how could the (anti) social networks that created much of the problem take on the challenge of reinventing themselves for the good of humanity and a more dignified place for their brands in history?
Let’s get to work, everyone?
Listen to the song Vivo by Lenine here.
Ficha Técnica
Texto:
Fred Gelli
Comunicação&Mkt&Marca Tátil:
Luiza Magalhães, Marcelo Cândido e Natália Silveira
Assessoria:
Flávia Nakamura