Credit: Work by Gabi Gelli - Ressignificação, 2019

IA generativa e a terceirização da imaginação

Generative AI and the outsourcing of imagination

02.2024

Artigo de Fred Gelli para Fast Company
Article by Fred Gelli for Fast Company

Texto em Português e Inglês | Text in Portuguese and English 

[PT]
Imaginar.

Imaginar sempre foi um dos maiores diferenciais do Sapiens em relação a qualquer outro ser vivo neste planeta. Enxergar algo que ainda não existe. Conectar o que não foi conectado. Inventar. Dá para dizer que somos o animal mais criativo concebido pela evolução.

Nossa programação é aberta. Diferentemente de outros seres, que são geniais em suas relações com os ambientes, que constroem ninhos intrincados, que utilizam técnicas surpreendentes de caça e acasalamento, mas que sempre operam em cima de um roteiro quase que imutável.

O tubarão está há pelo menos 150 milhões de anos fazendo exatamente as mesmas coisas. Assim como as coníferas. Quem inventa o novo somos nós. E agora inventamos algo para inventar pela gente.

Recentemente, diante do desafio de um novo projeto, com tudo o que um bom briefing poderia ter, como profundidade conceitual, liberdade criativa e desafio de redução de impacto ambiental, me vi começando o processo criativo usando uma dessas incríveis “máquinas de inventar”.

Era a KREA, uma IA generativa que, a partir de um rabisco — no meu caso, feito no trackpad do laptop –, oferece dezenas de interpretações muito interessantes do que ela entende que você supostamente teria imaginado por trás daquelas linhas meio tronchas. E, juro, não tem como não se surpreender com os resultados, especialmente pela velocidade de resposta.

Diferentemente do Midjourney ou mesmo o DALL-E, em que precisa escrever os prompts com alguma precisão, na KREA, a partir de um rabisco de criança, surgem instantaneamente renderings super bem-acabados do que ela imagina que você imaginou.

Crédito: KREA.AI

E é aí que o bicho começa a pegar. Mais uma terceirização. Dessa vez, da nossa capacidade de imaginar. Logo a tal que nos diferencia.

Num dado momento, depois de ter feito mais de 50 experiências, salvando dezenas de formas diferentes, me dei conta de que a parada vicia! Me senti como um daqueles coroas na frente de um caça níqueis sempre acreditando que a próxima jogada será a melhor. Só mais uma! Agora vai!

Um pouco desconfortável com o meu sentimento, sai do escritório em casa e, no caminho para a cozinha, passei por um vaso com uma grande bromélia florida. Toquei nela e, nessa hora, me dei conta de que eu estava indo contra tudo o que sempre acreditei sobre processos criativos.

Meu briefing pedia inspiração em uma flor e, até aquele momento — dois dias de trabalho — eu ainda não tinha uma daquelas flores nas mãos. Não tinha feito meu tradicional mergulho conceitual para mapear significados que aquele produto deveria ativar nas pessoas.

Estava ali como um zumbi hipnotizado por uma ferramenta que me oferecia um atalho, um prazer instantâneo em pencas de soluções muito razoáveis. Meio que uma ejaculação precoce criativa na qual as preliminares são totalmente desnecessárias. O que vale é ir direto ao ponto.

E olha que eu sou macaco velho de processos criativos. Design thinking, design feeling, biomimética, cocriação, nada disso estava na fita até aquele momento. Era eu a KREA. Ela imaginando por mim.

Estádio Nacional de Pequim (Crédito: beijingbirdsnet)

Recuperando a minha ainda ativa capacidade de imaginar, comecei a pensar em como serão os processos criativos da turma que já nasce podendo usar essas ferramentas. Aqueles que, diferentemente de nós, terão menos oportunidades de se “alfabetizarem” em processos criativos estruturados.

Por que gastar energia com essa coisa ultrapassada de ter que imaginar? O risco de o nosso cérebro interpretar dessa maneira é enorme. Ele está sempre atrás de uma chance de economizar energia com o que deixa de ser essencial.

Sempre fui contra o que chamava de “inspiração encadernada”, que vem da tentativa de achar em livros de design — e, agora, no Pinterest — ideias próximas da que precisamos ter. Ideias que outras pessoas tiveram para desafios diferentes do seu. Um prato cheio para criações frankensteins que misturam um pouco de muitas ideias. Caminho provável para a falta de brilho e originalidade.

As ideias que fazem a diferença no mundo, de um modo geral, são aquelas que emergem de uma jornada exploratória rica e diversa. Sempre com a participação das pessoas que irão desfrutar da proposta. Com elas e não para elas. As ideias surgem depois de muitos erros e acertos, no cruzamento entre o embasamento conceitual, metodologias estruturadas e muita intuição.
Agora estamos sendo tentados pelas inspirações instantâneas, quase um miojo criativo. Uma múltipla escolha de opções geradas por cérebros eletrônicos que oferecem economia do seu cérebro biológico, em troca do seu cadastro para que, na sequência, quem sabe, você passe para versão paga. Por sinal, uma pechincha de US$ 20 por mês.

E aí? O que isso pode mudar na nossa capacidade orgânica de inventar, de imaginar, de resolver problemas? Será que, de alguma forma, estamos correndo o risco de tornar nossa realidade menos interessante sem as ideias?

É claro que as IAs generativas são ferramentas incríveis que estão revolucionando nossa realidade, talvez mais do que qualquer outra invenção até aqui. Saber usá-las de forma correta para aumentar a produtividade e ampliar a exploração de possibilidades é prioridade para nós na Tátil e tenho certeza de que na maioria dos espaços criativos no mundo. Mas, imaginar as próximas gerações completamente dependentes delas para criar, confesso que me deu arrepios.

Outro risco que imaginei é um certo impacto no ego do criativo. Quanto tempo levaria para desenhar, renderizar ideias como aquelas geradas instantaneamente pelas IAs? Ou escrever as bases de um roteiro de um filme, ou ainda produzir fotos complexas com cenários e personagens extravagantes?

Crédito: Kuka Robotics

Fiquei imaginando um apertador de parafusos no começo da era industrial diante de um Kuka — marca registrada de robôs industriais — ou ainda um monge copista durante a Idade Média diante da prensa de Gutenberg.

Vale lembrar que, mesmo que as sensações de ameaça e frustração possam ser parecidas, existe uma diferença gigantesca. Novas tecnologias sempre foram disruptivas às anteriores. Na área criativa os computadores revolucionaram tudo o que existia.

Mas agora o que está em jogo é exatamente a essência do que nos faz humanos, nossa inteligência e capacidade de inventar. Foi por conta delas que prosperamos. O que poderá acontecer com a terceirização dessas competências?

Uma sensação de impotência diante da falta das ferramentas generativas pode, quem sabe, vir a ser um efeito colateral. Nossos talentos, que levamos milênios para desenvolver, estão realmente ficando obsoletos.

Quanto ao meu projeto? Bem, resolvi buscar inspiração no Jardim Botânico, na minha eterna fonte primária: a inteligência natural.

Confira o audio-artigo no Spotify

[EN]
Imagining.

Imagining has always been one of Sapiens’ greatest differentials from any other living being on this planet. To see something that doesn’t exist yet. Connecting what hasn’t been connected. To invent. You could say that we are the most creative animal conceived by evolution.

Our programming is open. Unlike other beings, which are ingenious in their relationships with their environments, which build intricate nests, which use surprising hunting and mating techniques, but which always operate on top of an almost immutable script.

The shark has been doing exactly the same things for at least 150 million years. So have conifers. We invent the new. And now we’re inventing something to invent for ourselves.

Recently, faced with the challenge of a new project, with everything a good brief could have, such as conceptual depth, creative freedom and the challenge of reducing environmental impact, I found myself starting the creative process using one of these incredible “inventing machines”.

It was KREA, a generative AI that, based on a scribble — in my case, made on the laptop trackpad — offers dozens of very interesting interpretations of what it understands you’re supposed to have imagined behind those half-assed lines. And, I swear, you can’t help but be surprised by the results, especially the speed of response.

Unlike Midjourney or even DALL-E, where you have to write down the prompts with some precision, in KREA, from a child’s scribble, super-finished renderings of what she imagines you have imagined instantly appear.

Crédito: KREA.AI

And that’s when it starts to get tough. Another outsourcing. This time, of our ability to imagine. The very thing that sets us apart.

At one point, after more than 50 experiments, saving dozens of different forms, I realized that it was addictive! I felt like one of those guys in front of a slot machine, always believing that the next play will be the best. Just one more! Now go!

A little uncomfortable with my feeling, I left the home office and, on my way to the kitchen, I passed a vase with a large flowering bromeliad. I touched it and at that moment I realized that I was going against everything I had always believed about creative processes.

My brief called for inspiration in a flower and, up until that moment — two days into the job — I hadn’t had one of those flowers in my hands. I hadn’t done my traditional conceptual dive to map out the meanings that product should activate in people.
I was standing there like a zombie hypnotized by a tool that offered me a shortcut, an instant pleasure in lots of very reasonable solutions. A kind of creative premature ejaculation in which foreplay is totally unnecessary. It’s all about getting straight to the point.

And I’m an old monkey when it comes to creative processes. Design thinking, design feeling, biomimicry, co-creation, none of that had been on the tape until then. I was KREA. She was imagining for me.

Estádio Nacional de Pequim (Crédito: beijingbirdsnet)

Recovering my still active capacity to imagine, I began to think about what the creative processes would be like for the class that was born being able to use these tools. Those who, unlike us, will have fewer opportunities to become “literate” in structured creative processes.

Why waste energy on this outdated idea of having to imagine? The risk of our brain interpreting it this way is enormous. It is always looking for a chance to save energy on what is no longer essential.

I’ve always been against what I used to call “bound inspiration”, which comes from trying to find ideas in design books — and now on Pinterest — that are close to what we need. Ideas that other people have had for different challenges. A full plate for frankensteined creations that mix a little of many ideas. A likely path to lackluster originality.

The ideas that make a difference in the world, in general, are those that emerge from a rich and diverse exploratory journey. Always with the participation of the people who will enjoy the proposal. With them and not for them. Ideas emerge after many mistakes and successes, at the crossroads between conceptual grounding, structured methodologies and a lot of intuition.

Now we’re being tempted by instant inspirations, almost like creative noodles. A multiple choice of options generated by electronic brains that offer to save your biological brain in exchange for your registration so that you can then, perhaps, upgrade to the paid version. A bargain at $20 a month, by the way.
So what can this change about our organic capacity to invent, to imagine and to solve problems? Are we somehow in danger of making our reality less interesting without ideas?

It’s clear that generative AIs are incredible tools that are revolutionizing our reality, perhaps more than any other invention so far. Knowing how to use them correctly to increase productivity and expand the exploration of possibilities is a priority for us at Tátil, and I’m sure for most creative spaces around the world. But imagining the next generation completely dependent on them to create gave me the creeps.

Another risk I imagined was a certain impact on the creative’s ego. How long would it take to design and render ideas like those generated instantly by AIs? Or write the basis of a movie script, or produce complex photos with extravagant settings and characters?

Crédito: Kuka Robotics

I was imagining a screwdriver at the beginning of the industrial age in front of a Kuka — the trademark of industrial robots — or even a copyist monk during the Middle Ages in front of the Gutenberg press.

It’s worth remembering that although the sensations of threat and frustration may be similar, there is a huge difference. New technologies have always disrupted previous ones. In the creative field, computers revolutionized everything that existed.

But now what’s at stake is exactly the essence of what makes us human, our intelligence and ability to invent. It is because of them that we have prospered. What could happen if these skills are outsourced?

A feeling of powerlessness in the face of the lack of generative tools could, perhaps, be a side effect. Our talents, which have taken us millennia to develop, really are becoming obsolete.

As for my project? Well, I decided to draw inspiration from the Botanical Garden, from my eternal primary source: natural intelligence.

Ficha Técnica

Texto:
Fred Gelli 

Comunicação&Mkt&Marca Tátil:
Luiza Magalhães, Marcelo Cândido e Natália Silveira

Assessoria:
Flávia Nakamura