Ana Branco - Arquivo pessoal Fred Gelli

O coração não conhece limites

The heart knows no limits

08.2024

Artigo de Fred Gelli para Fast Company
Article by Fred Gelli for Fast Company

Texto em Português e Inglês | Text in Portuguese and English 

[PT]
Independentemente de qualquer limitação que seu corpo possa apresentar, se seu coração quiser de verdade, você chega lá.

No dia 7 de setembro de 2016, às oito da noite, a contagem regressiva começava: 10, 9, 8, 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1, 0. Nesse exato momento, o atleta norte-americano Aaron Wheelz “dropa” uma mega rampa de skate de 30 metros, construída sob a supervisão de Bob Burnquist, e salta por dentro de um zero cenográfico, dando um mortal perfeito, pousando do outro lado para o delírio e a surpresa da plateia de 60 mil pessoas que lotavam o Maracanã naquela noite histórica.

O primeiro recado estava dado: não tenham pena desses caras! Eles são atletas incríveis que brigam por cada décimo de segundo em uma competição, que farão quase o impossível pela oportunidade de subir em um pódio representando seus países de origem.

Assim começava a cerimônia de abertura dos Jogos Paralímpicos Rio 2016. Resultado do trabalho de um super time de mais de 500 pessoas, com alguns dos melhores profissionais do mundo, que não mediram esforços para fazê-la inesquecível.

A responsa era maior ainda por conta do sucesso da abertura olímpica que arrebatou o mundo pouco mais de um mês antes. A missão de concebê-la na íntegra nos foi dada. A mim, ao Vik (Muniz) e ao Marcelo (Rubens Paiva).

Tudo com a produção corajosa e leve do nosso querido e saudoso Flávio Machado. Foram dois anos e meio de trabalho intenso, muita pesquisa, e muitos, muitos aprendizados!

Ouvir, por exemplo, do próprio Marcelo, que essa história de superação era papo furado, pois ele e muitas outras pessoas com deficiências não se sentiam superando nada. Seguiam suas vidas com os desafios e prazeres que todos nós temos. Ver o Marcelo brincando com os filhos que pegavam carona em sua cadeira de rodas elétrica em percursos sinuosos só confirmava essa perspectiva.

Muitas das nossas certezas e crenças iam sendo desmontadas a cada encontro com atletas e ex-atletas que nos mostravam como era fácil se equivocar mesmo com as melhores intenções.

Ouvir de um atleta de ponta que naquele momento, depois do acidente que lhe tirou as duas pernas, ele era muito mais feliz, pois finalmente tinha encontrado um propósito para sua vida, nos ajudava a enxergar o que aquela cerimônia realmente deveria celebrar.

Independentemente da configuração do seu corpo, das suas limitações de mobilidade e sentidos, quem manda mesmo é o coração. Pois ele não conhece limites! Ele é o que nos torna iguais em nossa condição verdadeiramente humana.
Cheguei ali vindo de experiências anteriores da criação das marcas olímpicas (uma história à parte), mas também da paralímpica, em que já tínhamos, todo o time da Tátil, mergulhado profundamente no universo dos valores, dos desafios e do caráter super inspirador dessa turma, no intuito de representá-los por meio de uma identidade forte e pertinente.

E foi nesse desafio — que, diferentemente da identidade olímpica, na qual corpos são representados de mãos dadas em um grande abraço evocando união e celebração — que entendemos que essa não trataria de corpos.

A marca paralímpica deveria traduzir a energia infinita que esses atletas têm de sair do fundo do poço, quando perdem eventualmente uma parte de seus corpos, até o alto do pódio.

Essa era a trajetória que queríamos representar. Os arquétipos do coração e do símbolo do infinito foram nossa inspiração para traduzir a potência dessa motivação. E mais do que isso.

A marca paralímpica, assim como a olímpica que já tinha sido tridimensional, agora deveria ser também multissensorial, para que todos, independentemente das características de seus corpos, pudessem interagir com a identidade que os representava.

Ela pulsava em luz e vibração, reagindo à aproximação das pessoas. Quando tocada, entrava em ressonância, por um som que misturava a batida do coração com os sons de uma torcida. Difícil explicar, mas dá para ver no vídeo abaixo, E funcionou de uma maneira única. 

Um dos momentos mais emocionantes foi quando Ádria Santos, uma das nossas maiores medalhistas paralímpicas, no dia do lançamento, com dezenas de fotógrafos e jornalistas à sua frente, se aproxima da marca sem que nada tivesse sido planejado e começa a interagir com ela sentindo o som, a pulsação do coração.

Ela não contém a emoção e começa a chorar dizendo que era a primeira vez em sua carreira de 20 anos como atleta paralímpica cega que podia finalmente interagir com a marca que a representava.

Claro que ninguém conseguiu segurar o choro, do Andrew Parsons, presidente do Comitê Paralímpico Brasileiro na época, até o assistente que segurava o microfone na hora da entrevista.

E esse era o universo de possibilidades criativas que nos foi aberto na concepção da cerimônia do dia 7 de setembro de 2016. Como traduzir aquela energia infinita, a resiliência daqueles atletas, o espaço que desafiava nosso senso comum e nos inspirava a encontrar a poética e a força plástica e simbólica do que veríamos durante os jogos que começariam no dia seguinte?

Além do clássico desfile dos atletas que culmina com a montagem de um grande quebra-cabeça com a foto de todos eles no meio do Maracanã, tivemos ainda 13 segmentos que, aos poucos, foram contando a história que tínhamos imaginado.

De Amy Purdy, atleta norte-americana de snowboard bi amputada — que, depois de aulas intensivas de samba com Alice Gelli, minha filhota e assistente criativa em todo o projeto, dança com um grande robô, mostrando a relação da tecnologia com o humano — até a coreografia de dois bailarinos cegos que tinham seus movimentos parametrizados em imagens táteis gigantes.

Da coreografia de grandes velas que teimam em velejar contra o vento com a missão de formar os “agitos” até o momento em que o Maracanã vira um grande coração, pulsando em luz e no som das palmas e batidas de pé de milhares de pessoas.

Mas foi no imprevisto que a mágica de fato aconteceu. Perto do momento de acender a pira paralímpica no Maracanã, a atleta Márcia Malsar corria com dificuldade por conta das sequelas de sua paralisia cerebral.

A chuva começava a cair e ela segurando a tocha acesa perde o equilíbrio e cai. Silêncio profundo. Duas pessoas da produção se aproximam para ajudá-la. Uma pega a tocha que continuava acesa.

Nós, na cabine de controle, nos olhamos aflitos, pois tudo poderia acabar ali se ela tivesse se machucado. Mas, na sequência, ela faz um sinal positivo para os jovens que a ajudavam, segura a tocha novamente e enfim volta a correr. Nessa hora o Maraca vai abaixo, em aplausos, gritos e assobios celebrando sua coragem.

Bom, não preciso dizer que esse foi o momento mais emocionante de toda a minha trajetória profissional. As lágrimas transbordavam na horizontal e nessa hora olhei para o Vik, o Marcelo e a Paula Melo, nossa super líder criativa, fundamental em todo o processo, e todos aos prantos nos demos conta que, depois desse tempo todo de projeto, de todo o investimento em cenários, figurinos e equipamentos, ali, naquele momento único e impensável, naquele que poderia ter sido o acidente que colocaria tudo a perder, é que nosso conceito se materializava da maneira mais clara e potente.

Diante de um Maracanã incrédulo, Márcia Malsar fazia valer a força de seu coração para levar, mesmo que com seu corpo frágil, o fogo paralímpico até a pira.

O coração realmente não conhece limites. Independentemente de qualquer limitação que seu corpo possa apresentar, se seu coração quiser de verdade, você chega lá! Que venham os Jogos Paralímpicos Paris 2024, mais uma vez nos mostrando que só a força do coração pode de fato mudar o mundo!  

[EN]
Regardless of any limitations your body may have, if your heart truly wants it, you’ll get there.
On September 7, 2016, at eight in the evening, the countdown began: 10, 9, 8, 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1, 0. At that very moment, American athlete Aaron Wheelz “dropped” down a 30-meter mega skate ramp, constructed under the supervision of Bob Burnquist, and leaped through a giant zero, performing a flawless somersault and landing on the other side to the delight and surprise of the 60,000 spectators that packed Maracanã on that historic night.

The first message was clear: do not pity these guys! They are incredible athletes who fight for every split second in a competition, who will do almost the impossible for the chance to stand on a podium representing their home countries.

Thus began the opening ceremony of the Rio 2016 Paralympic Games. It was the result of the efforts of a super team of over 500 people, including some of the best professionals in the world, who spared no effort to make it unforgettable.

The responsibility was even greater because of the success of the Olympic opening that captivated the world just over a month earlier. The mission to conceive it in its entirety was given to us: to me, Vik (Muniz), and Marcelo (Rubens Paiva).

All of this came together under the brave and light-hearted production of our dear and late Flávio Machado. It took two and a half years of intense work, extensive research, and many, many lessons!

For example, hearing from Marcelo himself that this story of overcoming obstacles was nonsense, as he and many other people with disabilities did not feel like they were overcoming anything. They lived their lives with the challenges and pleasures that we all have. Seeing Marcelo playing with his children who would hitch a ride on his electric wheelchair through winding paths only confirmed this perspective.

Many of our certainties and beliefs were being dismantled with each meeting with athletes and former athletes who showed us how easy it was to be mistaken even with the best intentions.

Hearing from a top athlete that at that moment, after the accident that took both his legs, he was much happier because he had finally found a purpose in his life helped us see what that ceremony should truly celebrate.

Regardless of the configuration of your body, of your mobility and sensory limitations, it is truly the heart that matters. Because it knows no limits! It is what makes us equal in our truly human condition.

And it was in this challenge — unlike the Olympic identity, which depicts bodies holding hands in a great embrace evoking unity and celebration — that we understood this was not about bodies.

The Paralympic brand needed to convey the boundless energy these athletes have, moving from the depths of despair when they might lose part of their bodies, to the heights of the podium.

This was the journey we wanted to represent. The archetypes of the heart and the infinity symbol were our inspiration to convey the power of this motivation. And more than that.

The Paralympic brand, just like the Olympic one which had already been three-dimensional, now needed to be multisensory as well, so that everyone, regardless of their bodily characteristics, could interact with the identity that represented them.

It pulsed with light and vibration, reacting to people’s proximity. When touched, it resonated with a sound that mixed the heartbeat with the sounds of a cheering crowd. It’s hard to explain, but you can see it in the video below, and it worked in a unique way.

One of the most emotional moments was when Ádria Santos, one of our greatest Paralympic medalists, on the day of the launch, with dozens of photographers and journalists in front of her, approached the brand — nothing had been planned — and began to interact with it, feeling the sound, the heartbeat pulse.

She couldn’t contain her emotion and started to cry, saying it was the first time in her 20-year career as a blind Paralympic athlete that she could finally interact with the brand that represented her.

Of course, no one could hold back the tears, from Andrew Parsons, the president of the Brazilian Paralympic Committee at the time, to the assistant holding the microphone during the interview.

And this was the universe of creative possibilities opened up to us in the conception of the ceremony on September 7, 2016. How to translate that infinite energy, the resilience of those athletes, a space that challenged our common sense and inspired us to find the poetic and plastic strength and symbolism of what we would see during the games that would start the next day?

In addition to the classic parade of athletes that culminates in the assembly of a giant puzzle with the photo of all of them in the middle of Maracanã, we also had 13 segments that gradually told the story we had imagined.

From Amy Purdy, the American bi-amputee snowboarder — who, after intense samba lessons with Alice Gelli, my daughter and creative assistant for the entire project, danced with a giant robot, showing the relationship between technology and the human — to the choreography of two blind dancers whose movements were mapped into giant tactile images.

From the choreography of large sails stubbornly sailing against the wind with the mission of forming the “agitos” to the moment when Maracanã turned into a giant heart, pulsating with light and the sound of clapping and stomping feet of thousands of people.

But it was in the unexpected that the magic truly happened. Near the moment of lighting the Paralympic cauldron in Maracanã, athlete Márcia Malsar was running with difficulty due to the aftereffects of her cerebral palsy.

The rain started to fall, and as she held the lit torch, she lost her balance and fell. A profound silence ensued. Two people from the production approached to help her. One took the torch, which remained lit.

We, in the control booth, looked at each other anxiously, as everything could end there if she had been injured. But then she gave a thumbs up to the young people who were helping her, took the torch again, and started running. At that moment, the Maraca erupted with applause, cheers, and whistles celebrating her courage.

Well, I don’t need to say that this was the most emotional moment of my entire professional journey. Tears were streaming horizontally, and at that moment, I looked at Vik, Marcelo, and Paula Melo, our super creative leader, essential throughout the process, and all in tears, we realized that after all this time of the project, all the investment in scenery, costumes, and equipment, it was in that unique, unthinkable moment, in what could have been the accident that ruined everything, that our concept materialized in the clearest and most powerful way.

In front of an incredulous Maracanã, Márcia Malsar made the strength of her heart matter, to carry, even with her fragile body, the Paralympic flame to the cauldron.

The heart truly knows no limits. Regardless of any limitations your body may have, if your heart truly wants it, you can make it happen! Here’s to the Paris 2024 Paralympic Games, once again showing us that only the strength of the heart can truly change the world! 

Ficha Técnica

Texto:
Fred Gelli 

Comunicação&Mkt&Marca Tátil:
Luiza Magalhães, Marcelo Cândido e Natália Silveira

Assessoria:
Flávia Nakamura