Crédito: @gabmendss
O valor do que é realmente original e o miojo criativo
The Value of True Originality and Creative Instant Noodles
07.2024
Artigo de Fred Gelli para Fast Company
Article by Fred Gelli for Fast Company
Texto em Português e Inglês | Text in Portuguese and English
[PT]
O dia era 19 de maio de 1967. O local, Brian Epstein Saville Theatre, em Londres.
As especulações na imprensa eram de que algo realmente novo seria apresentado ao mundo e que tinha tudo para surpreender, até os maiores entusiastas da banda mais famosa de todos os tempos.
“Sergeant Pepper’s Lonely Hearts Club Band”, dos Beatles, não só cumpriu a promessa, mas segue sendo considerado um dos 10 álbuns mais importantes de toda a história da música. Ganhou dois Grammys, foi sucesso instantâneo de público, influenciou não só a música dali para frente, mas a arte, a moda e a cultura.
De alguma forma, dá para dizer que essa explosão criativa — que contou com técnicas de gravação completamente revolucionárias, instrumentos nunca usados no pop como cítaras e tablas e ainda uma capa icônica desenhada por Jann Haworth e Peter Blake — se transformou em uma obra-prima atemporal e mudou o mundo.
O que uma ideia precisa ter para mudar o mundo? O que faz com que pessoas consigam metabolizar ingredientes que já estão por aqui — são sete notas musicais, 118 elementos químicos na tabela periódica e um bom punhado de palavras — de uma forma completamente nova? O que é realmente original, o que surpreende, choca, desmonta padrões, quebra regras?
Pode ser uma música, uma teoria científica, um manifesto artístico ou uma revolução. O fato é que essas ideias, quando são realmente originais, viram marcos, impactando para sempre nosso jeito de entender o passado, viver o presente e, o mais importante, imaginar o futuro. Pois a partir delas novas possibilidades se abrem.
O que Albert Einstein, Pablo Picasso, Heitor Villa-Lobos, Marie Curie, Igor Stravinsky, Santos Dumont, Tarsila do Amaral, Mahatma Gandhi, Carolina Maria de Jesus e Pelé têm em comum?
Parece que primeiro eles sempre estiveram mais dispostos a correr riscos, experimentando mais, tanto no sentido técnico, mas também cultural e social, quebrando regras e paradigmas estabelecidos.
Ao mesmo tempo, parecem ter tido a capacidade de catalisar as latências de seu tempo. O que já estava no ar e ninguém conseguiu canalizar até ali. Eles não estavam apenas recombinando o que já tinha sido feito antes. Não estavam apegados ao lugar seguro, ao que já deu certo. Eles apostaram no novo.
Mas, acima de tudo, parece que todos eles conseguiram criar algo realmente original exatamente por terem a coragem de se manter conectados às suas origens, respeitando o que lhes foi particular em suas trajetórias e tirando dali os insumos para propor o novo.
Steve Jobs criou os diferenciais da Apple a partir das suas experiências de vida, incluindo o fato de ter sido adotado, sua viagem à Índia e seu interesse em caligrafia. Frida Kahlo, em sua abordagem artística revolucionária, basicamente expõe as cicatrizes de uma vida intensa, marcada por um acidente grave na juventude, que a fez mergulhar em seu interior e compartilhá-lo com o mundo. Nenhum deles estava tentando imitar ninguém.
Estavam, sim, dando vazão às suas mais profundas crenças moldadas por suas origens, por suas limitações e talentos. Provavelmente conseguindo um nível de contato extra com sua origem, com o que de fato os definia. Parece óbvio, mas não é.
É muito comum que acreditemos que, em um mundo cada vez mais competitivo, teremos mais chances de nos destacar se estivermos seguindo modelos comprovados de sucesso, copiando a concorrência que foi bem-sucedida ou mesmo negando nossa origem em nome de referências idealizadas, seja para um indivíduo ou uma empresa. Essa reflexão serve para ambos.
Empresas são um grupo de pessoas que colocam suas competências essenciais a serviço de objetivos comuns. Elas serão mais ou menos originais na medida em que consigam ter clareza absoluta de suas origens, da razão pela qual elas existem e prosperaram até aqui.
Nessa hora, o movimento seguinte é buscar a ressignificação dessa origem à luz das novas demandas do mundo. Desse encontro surge o espaço para que ideias verdadeiramente originais possam emergir.
Em inglês, a palavra “origin” está contida em “originality”. Uma sobreposição que está nos inspirando por conta da celebração dos 35 anos da Tátil. Consultoria de branding e design que nasce da minha origem como estudante de design em 1989, absolutamente entusiasmado com a ideia da natureza como fonte poderosa de inspiração para pensar inovação. Todo o nosso esforço de colocar ideias originais no mundo nesse tempo todo emerge dessa origem e abre espaço para essa reflexão que faço agora.
O fato é que, sem ideias e soluções verdadeiramente originais, dificilmente conseguiremos construir futuros desejáveis para nós como espécie e para tudo o mais que existe vivo neste planeta incrível.
Por hora, receio que estejamos comprometendo parte da nossa capacidade de ter essas ideias frescas e revolucionárias na medida que temos terceirizado duas das competências essenciais que nos fazem uma espécie fundamentalmente criativa: a intuição e a imaginação.
Como já trouxe em outros artigos, os algoritmos e, mais recentemente, as inteligências artificiais generativas vêm ganhando espaço na maneira como decidimos e criamos. Com isso, as novas gerações, especialmente as nativas digitais, correm o risco de terem essas competências ancestrais atrofiadas, pois o cérebro, obcecado por economia como é, entende que o que não está sendo usado não merece receber energia.
E o pior, logo no momento em que mais precisarão delas, pois estão herdando uma gigantesca batata quente com as inevitáveis questões sociais e climáticas no horizonte, sem falar nas guerras, na crise sistêmica da democracia e do capitalismo.
Imaginar o novo será praticamente pré-condição para nossa sobrevivência. O problema é que parece que estamos apostando todas as nossas fichas nas inteligências artificiais como o Santo Graal da inovação com suas respostas instantâneas, entregando o máximo de produtividade e, na área criativa, fazendo em segundos o trabalho que dezenas de pessoas levariam dias.
E aí que mora o perigo. Tudo que as IAs nos oferecem, por enquanto, tem a ver com o que elas enxergam pelo retrovisor a partir da capacidade de metabolizar toda a produção humana até aqui.
A coisa complica ainda mais quando, uma vez que nos últimos 18 meses elas já praticamente devoraram todo o conteúdo disponível, começam agora a se alimentar de sua própria produção, se tornando autorreferentes e, por consequência, ainda mais homogêneas em sua estética e estilos bastante reconhecíveis.
Isso vale para imagens e vídeos, mas também para textos, nos quais argumentações cheias de convicção, mesmo que equivocadas, diante de uma confrontação simplesmente pedem desculpas pelo engano e partem para o próximo desafio.
Corremos o risco de ver nossa produção cultural, intelectual e expressiva virando um grande miojo criativo em sua mediocridade aparentemente saborosa.
Longe de mim negar a potência das inteligências artificiais e seu papel nos processos de inovação com sua capacidade infinita de análise de grandes volumes de dados ou ainda de simulação e modelagem de cenários complexos.
Minha provocação tem sido a de que não podemos permitir que a nossa inteligência natural, aquela que nos trouxe até aqui e que, inclusive, é a responsável pela invenção das ferramentas de IA, seja esvaziada de sua relevância, sob risco de, sem ela e todo o seu sofisticado sistema à base de sinapses, deixemos de ser quem controla para sermos controlados.
[EN]
The date was May 19, 1967. The place, Brian Epstein Saville Theatre, in London.
Speculation in the press suggested that something truly new would be presented to the world and had everything to surprise, even the greatest enthusiasts of the most famous band of all time.
“Sergeant Pepper’s Lonely Hearts Club Band” by the Beatles not only fulfilled the promise but is still considered one of the 10 most important albums in the history of music. It won two Grammys, was an instant public success, and influenced not only music but also art, fashion, and culture.
In some way, it can be said that this creative explosion — which featured completely revolutionary recording techniques, instruments never used in pop music such as sitars and tablas, and an iconic cover designed by Jann Haworth and Peter Blake — transformed into a timeless masterpiece and changed the world.
What does an idea need to change the world? What makes people able to metabolize ingredients that are already here — seven musical notes, 118 chemical elements in the periodic table, and a handful of words — in a completely new way? What is truly original, what surprises, shocks, dismantles patterns, breaks rules?
It can be a song, a scientific theory, an artistic manifesto, or a revolution. The fact is that these ideas, when they are truly original, become milestones, forever impacting our way of understanding the past, living the present, and, most importantly, imagining the future. Because from them, new possibilities open up.
What do Albert Einstein, Pablo Picasso, Heitor Villa-Lobos, Marie Curie, Igor Stravinsky, Santos Dumont, Tarsila do Amaral, Mahatma Gandhi, Carolina Maria de Jesus, and Pelé have in common?
It seems that first, they were always more willing to take risks, experimenting more, both technically but also culturally and socially, breaking established rules and paradigms.
At the same time, they seemed to have the ability to catalyze the latent trends of their time. What was already in the air and no one had managed to channel until then. They were not just recombining what had been done before. They were not clinging to the safe spot, to what had already worked. They bet on the new.
But above all, it seems that all of them managed to create something truly original precisely because they had the courage to stay connected to their origins, respecting what was particular to them in their trajectories and drawing from there the inputs to propose the new.
Steve Jobs created Apple’s differentiators based on his life experiences, including being adopted, his trip to India, and his interest in calligraphy. Frida Kahlo, in her revolutionary artistic approach, basically exposed the scars of an intense life, marked by a serious accident in her youth, which made her dive into her interior and share it with the world. None of them was trying to imitate anyone.
They were, indeed, giving vent to their deepest beliefs shaped by their origins, by their limitations, and talents. Probably achieving an extra level of contact with their origin, with what indeed defined them. It seems obvious, but it is not.
It is very common to believe that, in an increasingly competitive world, we will have a better chance of standing out if we follow proven models of success, copying the successful competition, or even denying our origin in the name of idealized references, whether for an individual or a company. This reflection applies to both.
Companies are a group of people who put their core competencies at the service of common goals. They will be more or less original to the extent that they can have absolute clarity about their origins, the reason they exist, and have thrived up to this point.
At this moment, the next move is to seek the re-signification of this origin in light of the new demands of the world. From this encounter arises the space for truly original ideas to emerge.
In English, the word “origin” is contained in “originality.” An overlap that inspires us due to the celebration of Tátil’s 35th anniversary. A branding and design consultancy that was born from my origin as a design student in 1989, absolutely enthusiastic about the idea of nature as a powerful source of inspiration for thinking about innovation. All our effort to put original ideas into the world during this time emerges from this origin and opens space for the reflection I am making now.
The fact is that without truly original ideas and solutions, we will hardly be able to build desirable futures for us as a species and for everything else that exists alive on this incredible planet.
For now, I fear that we are compromising part of our ability to have these fresh and revolutionary ideas as we have outsourced two of the essential competencies that make us a fundamentally creative species: intuition and imagination.
As I have mentioned in other articles, algorithms and, more recently, generative artificial intelligences have been gaining space in the way we decide and create. With this, new generations, especially digital natives, run the risk of having these ancestral competencies atrophied, because the brain, obsessed with economy as it is, understands that what is not being used does not deserve to receive energy.
And worse, right at the moment when they will most need them, as they are inheriting a gigantic hot potato with the inevitable social and climate issues on the horizon, not to mention wars, the systemic crisis of democracy, and capitalism.
Imagining the new will be practically a pre-condition for our survival. The problem is that it seems we are betting all our chips on artificial intelligences as the Holy Grail of innovation with their instant answers, delivering maximum productivity, and in the creative area, doing in seconds the work that dozens of people would take days.
And therein lies the danger. Everything that AIs offer us, for now, has to do with what they see through the rearview mirror from the ability to metabolize all human production up to this point.
The situation becomes even more complicated when, since in the last 18 months they have practically devoured all available content, they are now starting to feed on their own production, becoming self-referential and, consequently, even more homogeneous in their aesthetics and quite recognizable styles.
This applies to images and videos, but also to texts, in which arguments full of conviction, even if mistaken, simply apologize for the error when confronted and move on to the next challenge.
We run the risk of seeing our cultural, intellectual, and expressive production turn into a large creative instant noodle in its seemingly tasty mediocrity.
Far from me denying the power of artificial intelligences and their role in innovation processes with their infinite capacity to analyze large volumes of data or simulate and model complex scenarios.
My provocation has been that we cannot allow our natural intelligence, the one that brought us here and that, indeed, is responsible for the invention of AI tools, to be emptied of its relevance, at the risk that, without it and its entire sophisticated synapse-based system, we will stop being the controllers to be controlled.
Ficha Técnica
Texto:
Fred Gelli
Comunicação&Mkt&Marca Tátil:
Luiza Magalhães, Marcelo Cândido e Natália Silveira
Assessoria:
Flávia Nakamura