Credit: Work by Gabi Gelli - Ressignificação, 2019
O Web Summit, a Bienal de Veneza, Montezuma e a singularidade
The Web Summit, the Venice Biennale, Montezuma, and the Singularity
12.2024
Artigo de Fred Gelli para Fast Company.
Article by Fred Gelli for Fast Company.
Texto em Português e Inglês | Text in Portuguese and English
[PT]
Acabo de voltar de uma sequência de experiências que chacoalharam minha cabeça e meu coração. Foram 15 dias entre o Web Summit Lisboa, onde fiz uma palestra no palco Creative, em seguida mais uma semana mergulhando no mundo da arte contemporânea na 60ª edição na Bienal de Arte de Veneza, que este ano contou pela primeira vez com a curadoria de um brasileiro, Adriano Pedrosa.
Em comum, os dois eventos são os maiores palcos de discussão e apreciação de suas respectivas áreas. No primeiro, mais de 70 mil pessoas do mundo todo compartilham a vanguarda da cena de inovação e tecnologia, em que, naturalmente, a grande protagonista foi a evolução exponencial das INTELIGÊNCIAS ARTIFICIAIS. No segundo, mais de 300 artistas do mundo todo se espalham pelas Giardini e Arsenale, áreas específicas da Bienal, mas também por vários outros hot spots da cidade, apresentando pinturas, esculturas, instalações entre outras formas de manifestação das INTELIGÊNCIAS NATURAIS que a arte (ainda) representa.
É difícil imaginar contraste maior entre os estímulos, reflexões e sensações nos dois eventos, mas foi exatamente aí que surgiu o insight para escrever este artigo. Na verdade, me dei conta que na minha própria palestra eu já estava trazendo a tensão entre esses dois mundos, quando faço a provocação sobre os riscos da atrofia de algumas das nossas competências estruturantes e ancestrais, como a imaginação a intuição, por conta da delegação de muitas das nossas demandas para as AIs. Como o cérebro é obcecado por economia, o que ele entende que não estamos mais usando ele redireciona a energia para outro lugar. Como por exemplo a habilidade que tínhamos de guardar números telefônicos e que perdemos quando terceirizamos esta demanda para os celulares. Em Veneza, a imaginação e a intuição pareciam transbordar, quase que como em uma “reserva” em que essas habilidades mágicas que nos diferenciam de todas as outras espécies, estivessem protegidas do apetite voraz da tecnologia. Pelo menos foi essa a minha leitura inicial nos dois primeiros dias de Bienal. Só que tinha mais uma conexão muito interessante.
O tema desta edição era “estrangeiros em todo lugar” (Foreigners Everywhere), em que artistas, em sua grande maioria à margem dos circuitos de museus e galerias, apresentaram sua visão de mundo. A contundência do ponto de vista do colonizado, do explorado, do refugiado e expatriado estava por toda parte. Como por exemplo, no trabalho de Aydeé Rodríguez López, artista que se define como afro-mexicano, que retrata a realidade nas plantations de algodão, em que escravos africanos são explorados por mexicanos e colonizados por espanhóis.
A partir dessa obra, comecei a me dar conta de que algumas das falas mais contundentes que ouvi no Web Summit tinham uma possível conexão profunda com o que estava exposto na Bienal.
A história da humanidade é marcada por dinâmicas de poder em que tecnologias superiores desempenharam um papel decisivo. Desde o domínio do fogo, passando pela agricultura ou no desenvolvimento de meios de comunicação, quem detinha a tecnologia controlava o destino daqueles que não a possuíam. Essa dinâmica, que resultou na subjugação de povos inteiros, manifestada em muitas das obras expostas na Bienal, podiam nos oferecer um alerta para os desafios do presente, especialmente diante do avanço exponencial das inteligências artificiais gerais.
Em uma das conversas mais impactantes do Web Summit, Max Tegmark, físico e pesquisador do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), se alinha a muitos outros experts em AIs e destaca os riscos incomensuráveis de uma possível AGI descontrolada com competências muito superiores a nossa capacidade cognitiva.
Me dei conta que ele se referia a essa “entidade” (com um possível QI de 5000, quando o de Albert Einstein era de 160) como uma força opressora.
Uma potencial colonizadora contemporânea? E nós, primitivos Sapiens, colonizados?
Os Astecas e o Fascínio por Cortés
Em 1519, Montezuma e os astecas enfrentaram Hernán Cortés, um conquistador espanhol que, apesar de representar uma ameaça óbvia, foi recebido com reverência. O fascínio pelo “outro”, alimentado pela percepção de poder divino e promessas de mudança, facilitou o caminho para a destruição do grande e poderoso império asteca. Cortés não venceu apenas pela superioridade tecnológica de suas armas ou pela introdução de doenças, mas também por explorar divisões internas e manipular o encantamento cultural que o cercava.
Essa tragédia histórica, como muitas outras, revela como a subestimação de riscos pode ser fatal. Apesar de pressentirem o perigo, os Astecas contribuíram, talvez hipnotizados, para a consolidação do poder de Cortés. Esse fascínio, difícil de explicar, ecoa em dinâmicas modernas, como a relação com líderes autoritários ou com novas tecnologias que prometem transformar o mundo, como as AIs.
Em Veneza, diante de tantos trabalhos que retratavam oprimidos em várias culturas, na América Latina, África ou Oriente Médio, me dei conta de como podemos estar repetindo erros históricos, subestimando forças que não controlamos.
Na enorme maioria das falas no Web Summit, o encantamento com as AIs, me fizeram imaginar os poderosos astecas encantados com aquele guerreiro ruivo que magicamente flutuava em uma nave diante dos seus olhos incrédulos.
A arte sempre antecipou a realidade. A poesia antevê o que a ciência descobrirá. Talvez, mais do que nunca, tenhamos que ampliar nossa conexão com essa forma de expressão do espírito humano. Quem sabe ela possa nos proteger de nós mesmos, essa espécie estranha que somos, que parece oscilar entre o brilho e a barbárie, entre a lucidez revolucionária e a míope estupidez.
Mas, para isso precisamos cultivar nossas competências mais profundas e ancestrais, as que nos fazem singulares, nossa intuição, nossa sensibilidade, nossa espiritualidade, pois só assim aumentaremos as chances de utilizarmos toda essa incrível tecnologia que se materializa exponencialmente na frente dos nossos olhos, a nosso favor e do nosso planeta azul. E não o contrário.
[EN]
I just returned from a series of experiences that shook both my mind and heart. Over 15 days, I transitioned between the Web Summit in Lisbon, where I gave a talk on the Creative stage, and another week immersed in the world of contemporary art at the 60th edition of the Venice Biennale — this year featuring, for the first time, a Brazilian curator, Adriano Pedrosa.
What both events share is that they are the largest stages for discussion and appreciation in their respective fields. At the first, over 70,000 people from across the globe exchanged insights on the cutting edge of innovation and technology, where the undeniable protagonist was the exponential evolution of Artificial Intelligences (AIs). At the second, more than 300 artists from around the world spread across the Giardini and Arsenale — specific areas of the Biennale — as well as numerous hotspots throughout the city, presenting paintings, sculptures, installations, and other forms of expression representing the Natural Intelligences that art (still) embodies.
It’s hard to imagine a starker contrast between the stimuli, reflections, and sensations evoked by these two events. Yet, it was precisely in this contrast that I found inspiration to write this article. In fact, I realized during my own talk that I was already exploring the tension between these two worlds. I had raised concerns about the risks of neglecting some of our foundational and ancestral abilities, such as imagination and intuition, as we increasingly delegate tasks to AIs. The brain, obsessed with efficiency, reallocates energy away from what it perceives we no longer use — like how we lost the ability to remember phone numbers when we outsourced that task to smartphones.
At the Biennale, imagination and intuition seemed to overflow, almost as though these magical qualities that distinguish us from other species were being safeguarded against the voracious appetite of technology. At least, that was my initial interpretation during the first two days of the Biennale. But there was another fascinating connection.
This year’s theme, Foreigners Everywhere, highlighted the perspectives of colonized, exploited, and displaced peoples, with many of the featured artists operating outside mainstream museum and gallery circuits. A striking example was Aydeé Rodríguez López, a self-described Afro-Mexican artist who portrayed life on cotton plantations where African slaves were exploited by Mexicans, who in turn were colonized by Spaniards.
This artwork led me to realize that some of the most striking discussions I had heard at the Web Summit had a profound potential connection to what was on display at the Biennale.
Human history has been shaped by power dynamics where superior technologies played a decisive role. From mastering fire to developing agriculture and communication tools, those who held technological advantages dictated the fate of those who didn’t. This dynamic, vividly portrayed in many Biennale works, serves as a warning for today’s challenges — especially as general artificial intelligences (AGIs) advance exponentially.
During one of the Web Summit’s most impactful talks, Max Tegmark, a physicist and MIT researcher, echoed concerns shared by many AI experts, emphasizing the immeasurable risks of a potential runaway AGI with abilities far surpassing our cognitive capacity. He described this “entity” (possibly with an IQ of 5000, compared to Albert Einstein’s 160) as an oppressive force.
A contemporary colonizer? And us, primitive Homo sapiens, its colonized subjects?
The Aztecs and Cortés
In 1519, Montezuma and the Aztecs faced Hernán Cortés, a Spanish conquistador who, despite being an obvious threat, was welcomed with reverence. The Aztecs’ fascination with the “other,” fueled by perceptions of divine power and promises of change, eased the path to the downfall of their vast empire. Cortés triumphed not only due to the technological superiority of his weapons or the spread of diseases but also by exploiting internal divisions and manipulating the cultural enchantment surrounding him.
This historical tragedy, like many others, reveals how underestimating risks can be fatal. Despite sensing danger, the Aztecs, perhaps mesmerized, contributed to Cortés’s consolidation of power. This inexplicable fascination resonates with modern dynamics — whether in our relationships with authoritarian leaders or with groundbreaking technologies like AIs that promise to transform the world.
At the Biennale, surrounded by artworks depicting oppressed peoples across cultures in Latin America, Africa, and the Middle East, I realized how we might be repeating historical mistakes, underestimating forces we cannot control.
The overwhelming excitement for AIs at Web Summit brought to mind the awe-struck Aztecs gazing at a red-haired warrior seemingly floating in a magical ship.
Art has always anticipated reality. Poetry envisions what science will one day uncover. Perhaps now, more than ever, we must deepen our connection to this form of human expression. Art might shield us from ourselves — this strange species oscillating between brilliance and barbarism, revolutionary lucidity and short-sighted foolishness.
To achieve this, we need to nurture our deepest, most ancestral abilities: intuition, sensitivity, and spirituality. Only then can we better harness the extraordinary technologies materializing before our eyes — for our benefit and that of our blue planet.
Not the other way around.
Ficha Técnica
Texto:
Fred Gelli
Comunicação&Mkt&Marca Tátil:
Luiza Magalhães, Marcelo Cândido e Natália Silveira
Assessoria:
Flávia Nakamura